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Bombos

Historicamente, o termo bombos tem três aceções principais: o de instrumento musical com uma organologia própria, o de grupo de instrumentos específicos e o de prática performativa. Estas três acepções estão já presentes no “Preâmbulo” ao segundo volume do Cancioneiro de Músicas Populares editado por César das Neves e Gualdino de Campos em 1895. Nesse Preâmbulo, César das Neves referiu-se a dois tipos de bombo: os tambores e o zabumba, um bombo maior com cerca de 70 centímetros de altura e 80 de diâmetro, que diz ser conhecido como Zé Pereira. Ainda segundo este autor, os zabumbas eram frequentemente acompanhados de caixas de rufo, realizando toques específicos como a marcha grave cujo ritmo transcreveu (Neves e Campos 1895). A este conjunto de instrumentos chamou tambores e aos seus tocadores, tamborileiros, distinguindo-os das charangas de tambores do exército que tocavam na procissão de Corpus-Christi. César das Neves informou ainda que a este grupo de tamborileiros se junta a gaita de foles nas “mais pomposas” festas populares das regiões do Minho e Trás-os-Montes. Relativamente à performance, o autor referiu o contexto das festas religiosas, o espaço aberto da rua ou o cimo dos montes, o papel diferenciado do tambor-mor nas festas de S. Gonçalo de Amarante, o elevado número de instrumentos contratados para tocar e a dança dos tocadores.

A participação dos “bombos” ou “Zés Pereiras” em festas religiosas estão documentados tanto na literatura de viagem (ver por exemplo Apontamentos de Viagem de Alexandre Herculano, de 1853-54) como na etnografia portuguesa oitocentista (ver Teófilo Braga O povo português e os seus costumes, 1885). Na resenha dos instrumentos musicais portugueses elaborada por Michel’Angelo Lambertini nos primeiros anos do século XX e publicada sob o título Chansons et Instruments, os Zés Pereiras são comparados a uma “orquestra diabólica”. Data também destes anos a referência à participação de Zés Pereiras na abertura e reclamo de lojas comerciais (Illustração Portugueza, 28 de Abril de 1913, p. 525).

Nos anos 30 do século XX, no âmbito das políticas culturais estadonovistas e da atividade folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional, os Bombos e Zés Pereiras foram convocados para participar em novos contextos performativos, como as Paradas Regionais e os Cortejos Folclóricos (refira-se a Parada Regional realizada na 1ª Exposição Colonial Portuguesa onde os Zés Pereiras “pontificavam com seu característico troar” (O Comércio do Porto, Número Privativo da 1ª Exposição Colonial Portuguesa, 1934). Data também desses anos, a performance dos bombos em palco, num espaço fechado (numa performance de apresentação na aceção de Thomas Turino). Essa performance ocorreu em novembro de 1935, no âmbito do II Espectáculo Regional, e foi realizada pelo grupo de Bombos de Lavacolhos, do concelho de Fundão. O grupo tocou e cantou para a assistência do Teatro de Castelo Branco e para a audiência da Emissora Nacional de Radiodifusão, esta última através dos emissores do continente e das colónias (Pestana 2010). A performance dos Bombos de Lavacolhos foi harmonizada em três peças musicais para piano, pífaro e bombo.

Os grupos de bombos estão documentados nas primeiras coleções de registo sonoro de música de matriz rural. Os primeiros registos de que temos conhecimento encontra-se na coleção intitulada Recolha Folclórica, realizada por Armando Leça em 1939-40 com o apoio de técnicos da Emissora Nacional de Radiodifusão, no âmbito das comemorações do duplo centenário, são a “Moda do Bombo” pelo já referido grupo de Lavacolhos, constituído agora por duas “zabumbas, duas caixas de rufo, um pífaro, três pandeiros, ferrinhos e coro misto” (BN//A.L.//24 // 3 cit. in Pestana 2012) e a “Arruada” pelo grupo de Zés Pereiras de Celorico de Basto, com quatro “bombos, quatro caixas, concertina, reque-reque, ferrinhos e cuco (BN//A.L.//24 // 3 cit. in Pestana 2012). O som dos bombos de Silvares, concelho de Fundão, foi captado por Vergílio Pereira em 1961, no âmbito da prospeção folclórica patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Neste registo o conjunto de bombos, constituído por bombo, caixa de rufo e pífaro (tocados por Joaquim Páscoa Silvestre; Joaquim Pires Soares; António Faia, Joaquim Antunes Ganga, e Fernando Morgadinho Jerónimo) foi gravado com a cantiga de romaria “Senhora Santa Luzia”, por um coro a duas vozes com Delfina Umbelina Roque, Maria dos Anjos Marques Alves e Carmina Alves Brás (VP 23a cit. in Pestana no prelo).

O estudo sistemático dos instrumentos e grupos deve-se a Ernesto Veiga de Oliveira e teve o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian. Veiga de Oliveira reuniu uma coleção de instrumentos que exibiu na Fundação Calouste Gulbenkian em 1965. No catálogo da exposição podemos ler: “notamos os enormes bombos e caixas da região do Fundão – os ‘Bombos’ – réplica dos zés-pereiras ocidentais, famosos pelo brio com que são tocados nas romarias onde comparecem, tal que ficam as peles ensanguentadas” (Catálogo da Exposição 1965, s.p.). O estudo foi publicado em 1966 com o título Instrumentos Musicais Populares Portugueses. Nas décadas seguintes, este estudo teve um enorme impacte na vida musical em Portugal levando músicos urbanos a realizar sucessivas peregrinações às oficinas dos artesãos para adquirir instrumentos e aprender novos toques dos bombos. Devido a esse impacte, os contextos de performance, as práticas do bombo e os tocadores aumentaram exponencialmente e as oficinas de artesãos ganharam nova vitalidade.

Em 2010, a etnomusicóloga Karla Bach iniciou uma pesquisa sobre os bombos em Lavacolhos, concelho do Fundão, tendo feito um levantamento exaustivo sobre o processo de construção do bombo, as histórias de vida dos tocadores, os contextos performativos e os termos émicos e metáforas usadas localmente para expressar a sonoridade dos bombos. A expressão “o som que estremece o coração”, que coligiu junto do construtor e tocador Américo Simão, foi divulgada no título do documentário que realizou sobre os Bombos de Lavacolhos, passando, depois, a ser integrada nos discursos locais e académicos como metáfora da sonoridade dos bombos de todo o concelho.

Referências
Neves, César das Neves e Gualdino de Campos. 1895. Cancioneiro de Músicas Populares. Volume II. Porto: Empresa Neves e Campos.
Pestana, Maria do Rosário. 2010. “Jaime Lopes Dias”. Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX. Coordenação de Salwa Castelo-Branco, 276-77. Lisboa: Círculo dos Leitores.
Pestana, Maria do Rosário. 2012. Armando Leça e a música portuguesa (1910-1940). Lisboa: Tinta-da-China.

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