Encomendação das almas
A “encomendação”, “amentação” ou “ementação” das almas é um ritual do culto dos mortos realizado à noite, ciclicamente, no período da Quaresma. O som de alguns dos cânticos que constituem esta prática está documentado desde 1939, na Recolha Folclórica realizada por Armando Leça com o apoio técnico da Emissora Nacional de Radiodifusão. Dez anos depois, Vergílio Pereira descreveu esse ritual no Cancioneiro de Resende (Pereira 1950). Data também desse ano o início do estudo que Margot Dias e Jorge Dias realizaram (Dias e Dias 1953). Os autores defenderam a sua singularidade face a outros cultos dos mortos realizados noutras culturas, justificando essa diferença com a “psicologia portuguesa saudosista, sonhadora e bondosa que transparece igualmente na nossa religiosidade” (Dias e Dias 1953, 75), um argumento que será desenvolvido mais tarde por Jorge Dias para justificar o que considerou serem os fatores de unificação da cultura portuguesa. O interesse por este ritual foi ainda partilhado no mesmo período por mais três membros da Comissão de Etnografia e História do Douro Litoral, Augusto César Pires de Lima e Alexandre Lima Carneiro (Lima e Carneiro 1951) e Manuel Rodrigues Simões Júnior (1953).
Deve-se a Vergílio Pereira o maior documentário sonoro desta prática. Este maestro interessou-se pelas estâncias cantadas da “Encomendação das Almas”, pelo processo e contexto performativo, providenciando dezenas de descrições sobre a participação dos “ementadores” e dos restantes habitantes da localidade que em suas casas rezam. Os participantes têm designações distintas, conforme as localidades: ementadores “amentadores”, “rogadores” ou “regrantes”. V. Pereira deu a conhecer a diversidade que o culto adquiria nos territórios por si prospecionados,: com ou sem indumentária própria; munidos ou não de instrumentos de ampliação da voz, percussão, idiofones ou instrumentos da banda filarmónica local; a solo ou em grupos de homens, mulheres ou ambos; em realizações responsoriais ou antifonais; cantada de uma janela alta ou percorrendo um itinerário em espaço aberto e parando em encruzilhadas ou em “pontos” altos de onde cantam e rezam; com, ou sem, a invocação dos falecidos; integrando outros cânticos como o “Alerta”, o “Bendito”, o “Oferecimento”, ou a “Oração”, podendo o último cântico ser os “Martírios do Senhor”, as “Doze Excelências”, a “Salve Rainha”, o “Rei da Glória”, “As Trevas”, o “Credo à Sagrada Morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo”, o “Oferecimento”, ou “Triste Dia”. A partir da coleção de V. Pereira, sabemos que a encomendação das almas podia fazer uma parte de um ritual maior, como aconteceu em Peraboa, concelho da Covilhã, onde foi antecedida dos Martírios e seguida do Testamento. Documentou a encomendação das almas em localidades onde ainda se cultivava e em localidades onde já não era praticada, apelando nestes casos à memória dos detentores desse conhecimento. A coleção de Vergílio Pereira, atualmente à guarda do Museu Nacional de Etnologia, reúne 248 cânticos associados à encomendação das almas.