Corais e Coros polifónicos, de câmara e sinfónicos
Grupos formalmente instituídos cuja atividade se divide entre ensaios (tempo de preparação) e apresentações públicas. Em Portugal, ao longo do século XX, a prática coral adquiriu uma crescente expressão em contextos formais (de igreja, de ensino, teatral e amador). Historicamente, no que se refere à atividade coral amadora, mas formalmente organizada e dirigida por um músico profissional, destacaram-se a Sociedade Coral Duarte Lobo, dirigida por Ivo Cruz (1901-1985), com o apoio de Mário de Sampayo Ribeiro (1898–1966), a Sociedade Coral de Lisboa, dirigida por Frederico de Freitas (1902-1980), o Conjunto Vocal Polyphonia dirigido por Mário de Sampayo Ribeiro ou o Coro do Grupo Dramático Lisbonense, dirigido por Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Estes e outros grupos vocais envolveram elementos das elites urbanas portuguesas sob a batuta de maestros reconhecidos no domínio da alta cultura, especializaram-se em determinados repertórios, como por exemplo as obras dos polifonistas portugueses, e promoveram a realização integral de composições eruditas para coro. O seu impacto estendeu-se à paleografia musical e à composição erudita para coro e para coro e orquestra. Organizados segundo o modelo STAB (soprano, tenor, alto, baixo e subdivisões), cujos elementos são capazes de interpretar repertório erudito e de ler a notação musical, ainda que parcialmente. Estes grupos partilham com o orfeonismo o perfil laico e o regime de voluntariado dos seus elementos. Será também em torno destes grupos que se foi construindo uma crítica musical especializada que, apesar de ser pouco desenvolvida, introduziu assuntos relacionados com a prática e consumos musicais: a afinação, o andamento, a homogeneidade das vozes, a suposta “qualidade” do repertório e da realização musical, entre outros. Neste processo foram cruciais duas instituições, quer na formação de maestros quer na disseminação em Portugal de repertório coral erudito: o Centro de Estudos Gregorianos fundado por Júlia d’Almendra em 1953 sob o patrocínio do Instituto de Alta Cultura, no âmbito específico da música coral sacra e a Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito da formação em direção coral.
Durante o regime do Estado Novo (1933-74), as apresentações públicas só podiam realizar-se depois de visadas pela Inspecção-Geral dos Espectáculos. Todavia, tal não impediu que o contexto da prática coral se constituísse como um terreno de resistência às políticas ditatoriais do regime. Essa contestação fez-se por duas vias principais: uma pela presença e voz conjunta em espaços de proximidade corporal e de comunicação de indivíduos que contestavam o regime, outra pelo repertório. Ao criarem espaços de emissão vocal, de proximidade corporal e de comunicação, estes grupos proporcionaram o emergir de sentimentos de pertença — intragrupo e com os seus públicos — e o desenhar de projetos coletivos de resistência política, impensáveis noutros contextos durante o regime ditatorial. No que se refere ao repertório, estes grupos combateram, por exemplo, a idealização da cultura popular folclorizada promovida pelo regime, cantando exemplos musicais colhidos in loco por colectores e por etnógrafos como Michel Giacometti, Lopes-Graça, Vergílio Pereira, ou harmonizados segundo uma estética de resistência. A ação de Fernando Lopes-Graça foi central: além de criar os ‘seus’ coros, Lopes-Graça compôs canções baseadas em tradições musicais populares. Em oposição à “simples e alegre” versão explorada pelos orfeões patrocinados pelo regime, Lopes-Graça enquanto compositor e maestro construiu novos sentidos da música portuguesa em torno da complexidade da música popular, expressa em ritmos assimétricos, melodias modais, articulação e sobreposição de vozes devedoras às práticas rurais. Com esta ação questionou os argumentos do regime criando um conflito dentro da própria retórica dominante. Esse conflito baseou-se também no repertório e na suposta essência da música portuguesa. Neste combate houve grupos — como o Coro da Incrível Almadense, o Coro da Juventude Musical Portuguesa ou o Coro da Universidade de Lisboa — que por vezes abandonaram as posturas em palco e vocalidades do canto em coro dominante a favor de novas e resistentes disposições dos corpos e vocalidades que aprenderam in loco com detentores de tradições rurais. Estes coros assumiram desde meados da década de 1960 uma contestação prática à ideologia do regime, introduzindo na performance coral um conflito que vulnerabilizou o modelo orfeónico cultivado durante décadas, nomeadamente pelo recurso a uma indumentária individualizada e pela ocasional integração do maestro no naipe de vozes. Segundo os elementos entrevistados, esses coros começaram por interpretar música antiga e obras de Fernando Lopes-Graça a partir de música tradicional portuguesa de matriz rural.
No período que se seguiu à revolução que reinstaurou a democracia em Portugal a prática coral voluntária multiplicou-se exponencialmente. Em democracia, o associativismo coral recuperou o espaço político de participação cívica na vida da sociedade local. Este boom não foi apenas quantitativo. Constatou-se que foi também a partir desses anos que mais se diversificaram as práticas de cantar em coro: fosse pela criação de grupos especializados num determinado tipo de repertório — polifónico, de câmara, sinfónico, gospel, tradicional, etc. — mas também pela organização de eventos corais. Este crescimento correlacionou-se ainda com o papel ativo que a administração local passou a ter após Abril de 1974 no financiamento público da cultura. O crescimento exponencial deste tipo de prática relacionou-se ainda com o aumento da acessibilidade a partituras para coro, decorrente das novas tecnologias (fosse pela facilitação da duplicação em fotocópia ou, mais recentemente, do descarregamento de formatos digitais) e da produção artística de um número cada vez maior de compositores. Os grupos corais voluntários que se fundaram após Abril de 1974 preferiram a designação “coro” ou “coral”, a “orfeão”, talvez pelas semantizações que esta última adquiriu durante o regime estadonovista. Durante este período observa-se que a prática coral formalmente insti- tuída partilhou um conjunto de comportamentos, códigos e valores que permitiram externa e internamente ser identificada como uma realidade própria. Em democracia, os praticantes deste tipo de cantar em coro convergiram (as divergências são pontuais) na construção de uma “cultura coral”. Todavia, foram identificados grupos modelares, ou seja, coros referidos pelos seus pares como sendo exemplares na representação dessa cultura coral. Entre eles, destaca-se, por exemplo, o Coral de Letras da Universidade do Porto.