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Orfeões

Orfeão refere-se a grupos e a sociedades corais. O termo foi introduzido em Portugal em finais do século XIX com grafias que testemunham a sua origem francesa (orphéon) e espanhola (orféon). O Orfeon Académico de Coimbra, masculino, e o Orpheon Portuense, misto, fundados em 1880 e 1881, respectivamente, foram as primeiras sociedades corais constituídas em Portugal. Nas primeiras décadas do século XX, o número de orfeões aumentou esponencialmente configurando um movimento social e político, tendo exprimido através do canto em coro um ideal republicano de civilidade, patriotismo e fraternidade, segundo um modelo europeu. Até aos anos trinta do século passado, esse movimento foi predominantemente masculino e jovem (empregados comerciais, funcionários, pequenos comerciantes, estudantes e recém-licenciados). Fora do âmbito associativo, constituíram-se grupos corais escolares e militares, designados orfeões. Durante o regime do Estado Novo (1933-74) o movimento orfeónico perdeu o vigor que teve nos anos anteriores.

A sociedade orfeão organiza-se segundo uma hierarquia (idêntica a outras sociedades musicais como as tunas) que coloca no topo a direcção (na qual o grupo coral está representado, normalmente, pelo regente/diretor artístico e por um dos seus elementos), eleita pelos sócios (os tipos mais frequentes são: protectores, honorários, executantes). A par do grupo coral, constituem-se no orfeão outros grupos performativos (cénico, de variedades, rancho folclórico, de poesia, grupo coral infantil, etc.) que realizam, em parceria com o coro ou independentemente, espectáculos privados, para sócios, e públicos. Exclusivamente para os sócios, desenvolvem-se na sede do orfeão actividades lúdicas (bailes, matinées, soirées, jogo), educativas (cursos, conferências, bibliotecas, exposições, escolas de música), desportivas, e. o. O grupo coral, constituído pelo regente, auxiliar(es) de regente(s), solista(s) e coro, obriga a direcção do orfeão ao cumprimento de três requisitos: manutenção do regente (agraciando-o com ‘objectos de arte’ ou de ‘valor’ e/ou com parte da receita de um ou mais espectáculos, ou com o pagamento de uma mensalidade), assiduidade dos sócios executantes (que está directamente relacionada com o seguinte) e contextos performativos (as digressões e os espectáculos públicos são o principal estímulo à assiduidade dos orfeonistas). A apresentação pública faz-se segundo um modelo de espectáculo, constituído por dois, três ou quatro partes, realizado normalmente em parceria com outro grupo (da sociedade orfeónica, ou outro), predominando, do início para o fim do século XX, os seguintes: tuna, cénico, solistas, variedades, rancho folclórico, outro grupo coral.

No século XXI, os principais contextos performativos são concebidos dentro de um princípio de intercâmbio e ocorrem em encontros de coros, festas concelhias, aniversários de instituições, cerimónias públicas e privadas. O regente ou diretor artístico, além de dirigir e ensaiar o grupo coral, é o principal responsável pela selecção do repertório (sendo frequentemente autor de arranjos e composições) e pela selecção/ rejeição de elementos do grupo coral e solistas (sujeitando-se estes aos critérios de ordem musical, comportamental ou moral do regente e da direcção). Inicialmente, o repertório circunscrevia-se, quase sempre, a composições contemporâneas ou do século XIX, de autores estrangeiros (cujas obras eram traduzidas ou adaptadas para português) e de autores portugueses (com significativa presença dos autores de arranjos e compositores naturais da região sede do orfeão). Também incluía , frequentemente, uma composição ou arranjo do regente. Na segunda metade do séc. XX, as rapsódias, assim como os arranjos de excertos de óperas, muito frequentes no início do século, cederam vez às ‘orfeonizações’ ou harmonizações de música da tradição oral, à execução de peças dos cancioneiros das tradições oral e escrita, aos arranjos de músicas de diferentes estilos e proveniências. Assim, ao longo da segunda metade do século XX, o repertório dos grupos corais alargou as suas representações temporais (das composições contemporâneas ao início do segundo milénio), geográficas (da região do orfeão, de Portugal e da Europa Ocidental, à música do mundo) e estilísticas (dos hinos, rapsódias, à polifonia, aos compositores clássicos, aos espirituais negros, passando pelo pop-rock, música de cinema e diferentes abordagens de exemplos coligidos da tradição oral: estilizações, orfeonizações, harmonizações, transcrições). Estes grupos executam, predominantemente, composições a quatro vozes, de curta duração (duas a quatro páginas). Factores relacionados com a capacidade de memorização ou leitura dos orfeonistas condicionam o repertório, observando-se esforços desenvolvidos pelas direcções no sentido de proporcionar ensino de música aos orfeonistas.

No século XXI, um número crescente de elementos lê pela partitura embora a memorização do texto musical continue a ser um importante meio de aprendizagem. Nestas colectividades, o canto em coro situa-se entre: as tradições musicais escrita e oral; a prática amadora e profissional; a cultura popular e a erudita. No que respeita à oscilação entre as tradições musicais escrita e oral, o repertório, embora composto, não é definitivo nem revela a mesma imutabilidade que uma composição na tradição musical escrita. Exposto à competência dos regentes para fazer arranjos musicais, tal repertório adapta-se às características do grupo: capacidade vocal e de memorização dos elementos do coro, número de vozes, composição do coro (misto, masculino, feminino, etc.). Quanto à coexistência da prática amadora e da profissional, enquanto que os orfeonistas não necessitam de ter formação musical, não são remunerados e têm profissões fora da área da música, aos regentes são exigidas competência e formação musical (os títulos académicos alcançados nos conservatórios nacionais ou no estrangeiro, ganharam, ao longo do tempo, uma crescente importância, sobrepondo-se aos títulos ou à prática adquirida, por exemplo, nas bandas militares). Além disso, os regentes auferem algum tipo de remuneração (através da oferta de uma ‘recompensa’ e da receita de um número contratado de espectáculos, ou de uma mensalidade em dinheiro, sendo esta última a que, ao longo do século XX, se foi generalizando), e tendem a acumular esta actividade com outras, também no campo da música (leccionação, composição, comércio de instrumentos ou partituras, etc.). No que se refere às culturas popular e erudita, o processo de aprendizagem é formal e o repertório é de autor. Todavia, a autoria é dúplice na medida em que a composição original de autor (remota) sofre arranjos na atualidade que legitimam uma nova autoria (próxima).

A oscilação, ao longo do séc. XX, entre um e outro polo nos três aspectos referidos conduziu à definição de um modelo de prática performativa que não se caracteriza pela afirmação de um tipo padronizado de repertório, intérpretes ou público, mas antes pela diversidade e versatilidade de cada um desses elementos do processo comunicativo. Também ao nível dos espaços e contextos performativos, este tipo de canto em coro revelou idêntica característica, executando-se em espaços abertos ou fechados (privados ou públicos), em cortejos, celebrações ou espectáculos, integrando-se em actos sociais, políticos, artísticos ou lúdicos. Considerando a quantidade de colectividades corais fundadas, o número de eventos e espectáculos realizados e de pessoas envolvidas no processo, observam-se dois períodos correspondentes a dois movimentos ascensionais. O primeiro ocorreu nas décadas de 20 e de 30 do séc. XX, seguido de um decréscimo de actividade. O segundo, nas décadas de 70 e 80, corresponde a um verdadeiro boom (embora se observe a tendência para abandonar a designação orfeão na constituição de sociedades corais). Este movimento teve maior expressão no centro-norte do país, onde, aliás, se geraram lutas pelo reconhecimento (destas, as que tiveram visibilidade de âmbito nacional geraram-se entre o Orfeão do Porto e o Orfeão Lusitano) e se desenvolveram acções no sentido da sua regulação (como a organização do 1º Congresso Orfeónico ou o 1º Concurso Orfeónico). Relativamente aos meios de difusão, estes grupos tiveram diferentes interlocutores. Na primeira metade do séc. XX, entre os orfeões e as emissoras de rádio estabeleceu-se uma relação de interesses: os orfeões asseguravam horas de emissão gratuita; as emissoras reconheciam, legitimavam e divulgavam a actividade dos orfeões. A partir de meados da década de 60, esta relação passou a fazer-se com a RTP. Em finais do séc. XX, estes grupos corais estabeleceram parcerias com a indústria discográfica no sentido de registarem a sua actividade, sendo de destacar a colecção de âmbito nacional produzida por Heinz Frieden. Ao longo do séc XX, aumentou de forma expressiva a representação feminina no coro (da quase inexistência para a predominância de vozes femininas) e diminuiu o número de elementos por coro. Embora o grupo coral seja a razão de ser do orfeão, a sobrevivência deste não depende daquele e as colectividades tenderam a fazer um maior esforço financeiro na edificação e manutenção das sedes do que no grupo coral.

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