Grupos de cante alentejano
O "Cante" ou "Cante Alentejano", também designado "Cantar à Alentejana", é uma prática de canto polifónico incluída na lista do Património Cultural Imaterial da UNESCO em 2014, frequentemente cantada sem acompanhamento instrumental. É cantado tanto por grupos formalmente instituídos frequentemente trajados e com cerca de 15 a 30 elementos e com um ensaiador ou mestre, como por grupos não-formais, mistos, masculinos ou femininos. Requer três papeis - o ponto (solista), que normalmente inicia o canto; o alto (solista, que entra depois do ponto e canta uma 3ª acima, fazendo por vezes a quinta, ou a 10ª acima do coro, frequentemente ornamentando a melodia, e destacando-se deste); e os baixos ou segundas que entram após o alto (Castelo-Branco 2014; Castelo-Branco 2008).
Enquanto que a criação de novos versos acompanha o dinamismo da atualidade, abordando temáticas relacionadas com acontecimentos e preocupações atuais, a criação de novos estilos (termo usado para referir as melodias) é menos frequente. No final do século passado, a etnomusicóloga Salwa Castelo-Branco assinalava o facto de apesar de nenhum cancioneiro referir o nome dos criadores de letra e música, estes serem bem conhecidos e admirados localmente, dando como exemplo o poeta popular Manuel Castro e o cantador António Luís Fialho, a quem é atribuída a criação de "dezenas de estilos" (Castelo-Branco 1992, 552).
Na documentação histórica sobre o Cante Alentejano escasseiam referências a normas tácitas ou explícitas de regulação desta prática musical coletiva. Ao longo do século XX o Cante Alentejano foi marcado por sucessivos processos de objetificação cultural (Handler 1988) inicialmente pela iniciativa individual de folcloristas e etnógrafos e, durante o período autocrático do Estado Novo (1933-74), no âmbito de uma estratégia política que pretendia controlar a vida social dos portugueses sob uma identidade "unificada’ que representamos com a metáfora da raiz unitária. A institucionalização de grupos masculinos de Cante Alentejano foi uma das faces visíveis desse processo.
Nas décadas de 1920-30, a institucionalização de grupos formais masculinos trajados, com uma indumentária representativa do trabalho e sociabilidades rurais, reconfigurou o Cante Alentejano. Durante o regime autocrático do Estado Novo (1933-74) o Cante foi integrado em eventos de promoção da região do Alentejo, datando de 1937 a primeira apresentação pública de grupos corais alentejanos na cidade de Lisboa. Dos grupos instituídos neste período, aquele que se mantêm ativo em 2018 é o Grupo Coral Mineiros de Aljustrel, fundado em 1926. Datam da década de 1930 as primeiras ações de controle (i) dos grupos de cante formalmente instituídos, expressas na sua integração nas Casas do Povo tuteladas pelo regime ditatorial e na organização de concursos e de eventos públicos, e (ii) dos grupos que se constituíam espontaneamente "sem licença", proibindo, multando e instaurando autos de transgressão aos cantadores que se reuniam depois das 21 horas, autos esses que conduziram por vezes à prisão dos cantadores (Simões 2017, 8). Essas ações de propaganda do regime, como referem Rodrigues dos Santos e Sónia Cabeça, impuseram a ideia de que o cante é masculino, excluindo as mulheres dos grupos formalmente instituídos (Santos e Cabeça 2010, 2). Foi ainda durante esse período, que o Cante Alentejano foi definido como a principal prática da identidade musical do Alentejo, em desfavor de outras práticas locais como o Cante ao Baldão, os Balhos, ou a Moda Campaniça (Barriga 2000). Datam deste período os primeiros registos sonoros desta prática polifónica. Foi realizada em 1939-40 pelo folclorista Armando Leça (1891-1977), documenta modas com os papéis do "ponto", "alto" e "coro"[1], realizados por homens e mulheres (Pestana 2014). Vinte e cinco anos depois, o etnógrafo corso Michel Giacometti editou o LP Alentejo, integrado na coleção Antologia da Música Regional Portuguesa, ao qual se seguiram Cantos Tradicionais do Distrito de Évora em 1965, Bailes Populares Alentejanos em 1968, Bonecos de Santo Aleixo, também em 1968, Alentejo. Música Vocal e Instrumental em 1974 (Oliveira 2017).
Após a reinstauração da democracia, em 1974, grupos de Cante Alentejano, movimentos associativos, o poder administrativo local e outros agentes resignificaram o Cante Alentejano e as suas raízes, nomeadamente ao enfatizarem memórias (discursos sobre o passado) relativas à opressão e resistência dos seus protagonistas durante o regime fascista. Na verdade, os discursos principais foram mais uma vez sobre o passado e a identidade. Este período corresponde ao aumento de novos grupos na região do Alentejo e na Área Metropolitana de Lisboa, onde há uma forte migração de alentejanos de grupos corais alentejanos (Castelo-Branco 2008) e de grupos femininos formalmente instituídos.
Destacam-se também iniciativas no sentido da transmissão e salvaguarda do Cante Alentejano. Na década de 1980 surgiram iniciativas locais pontuais de transmissão do Cante aos mais jovens, visando contrariar o envelhecimento dos elementos dos grupos através da renovação geracional. A formação de grupos de crianças e(ou) jovens foi uma das estratégias adotadas. Destacamos a criação em 1987, em Castro Verde, do Grupo Coral e Etnográfico Infantil "Os Carapinhas" de crianças e jovens fundado pela associação Cortiçol. Alguns dos seus elementos, como por exemplo os músicos Pedro Mestre e Filipe Pratas, integraram posteriormente grupos adultos locais. Seguiram-se vários projetos de ensino do Cante em diferentes localidades do Alentejo e, inclusive, na área Metropolitana de Lisboa. Como refere Castelo-Branco, "os municípios substituíram o Governo ao providenciar apoio financeiro e logístico (espaço para ensaios, transporte, etc.)" (2008, 123). Em paralelo a estas iniciativas institucionais, observam-se dinâmicas geradas dentro dos grupos em torno da organização de eventos locais, tais como Encontros, Festivais, Festas de aniversário, à semelhança do que aconteceu com grupos folclóricos um pouco por todo o país (Castelo-Branco e Branco 2003; Pestana e Ribeiro 2013). Os grupos estabeleceram redes de relações com os seus congéneres o que lhes permitiu organizar encontros e festivais em regime de permuta (o grupo que organiza o evento assume as despesas com alojamento e alimentação dos grupos convidados e compromete-se a retribuir com uma participação nos eventos destes, também sem cachet), gerando a circulação destes grupos pelo Alentejo e pelas localidades de migração de alentejanos na área metropolitana de Lisboa e inclusive fora de Portugal. Parafraseando Anderson, Salwa Castelo-Branco sustenta que estes encontros providenciaram a criação de uma "comunidade imaginada’ através da expressão sónica (2008, 24). Um outro tipo de iniciativas, no sentido da salvaguarda, promoção e divulgação do Cante Alentejano tem sido assumida por associações protetoras do património local, das quais destacamos a Cortiçol, a MODA – Associação do Cante Alentejano e a Confraria do Cante.
a partir de 2014 surgiu um crescendo de iniciativas que dinamizaram esta prática. Umas visaram promover o rejuvenescimento do Cante: logo em 2014, o evento As Novas Vozes do Cante, inserido na Festa do Avante!, no ano seguinte o evento I Encontro de Grupos Corais Juvenis em Reguengos de Monsaraz, entre outros. Multiplicaram-se os projetos que cruzam o Cante com outros comportamentos expressivos ou géneros musicais. Castelo-Branco sustenta que a inscrição na Lista da UNESCO "estimulou o interesse dos jovens por este modo expressivo, levando à formação de grupos corais constituídos exclusivamente por jovens, à sua integração em alguns grupos existentes, à formação de pequenos grupos constituídos por cantadores acompanhados pela viola campaniça e à configuração de novos idiomas musicais que misturam o cante com diversos estilos de música popular" (2017, 10). De entre os cantadores amadores, emergiram profissionais com considerável visibilidade, inclusive no âmbito das indústrias do espetáculo e da música. A profissionalização é segundo a antropóloga Susana Mareco o "principal aspecto que diferencia estes artistas dos grupos corais (tanto da antiga como da nova geração) [...] a música é a sua actividade profissional e são concorrentes entre si no que toca aos públicos, às editoras, às rádios, etc." (2017, 110). Paralelamente, intensificou-se a participação das mulheres, expressa na constituição de grupos formais e na organização de eventos. Em 2017, o Movimento Democrático de Mulheres fez o levantamento dos grupos de Cante Alentejano femininos (tendo cartografado 61 grupos) e promoveu vários encontros com o objetivo de valorizar a participação das mulheres e suscitar a reflexão sobre o papel das mulheres como cantadeiras, letristas, mestres ou organizadoras de eventos.
Data também deste período, a reativação de grupos de Cante instituídos na primeira metade do século XX, mas extintos há vários anos (por exemplo, os Arraianos de Ficalho). A partir da inscrição do Cante Alentejano na Lista da UNESCO, multiplicaram-se em diferentes municípios eventos em que a promoção turística se aliou à sua divulgação e(ou) de produtos regionais: o CanteFest’15, em Serpa; a Homenagem ao Cante, na Amareleja; a Festa do Cante nas Terras do Grande Lago, Reguengos de Monsaraz, em 2015, a Ovibeja um evento de promoção da agricultura e produção animal realizado em Beja, que em 2015 reuniu mais de 2000 cantadores no 1º Grande Encontro do Cante. Estas dinâmicas são decorrentes de iniciativas plurais ou seja de diferentes atores, com diferentes interesses.
Maria do Rosário Pestana
Maria José Barriga
Referências bibliográficas
Barriga, Maria José. 2000. Cante ao baldão uma prática de desafio no Alentejo. Lisboa : Edições Colibri.
Cabeça, Sónia Moreira. 2016. Estrutura e processo de formação das formas culturais. O caso do Cante Alentejano. Évora : Universiade de Évora.
Cabeça, Sónia Moreira e José Rodrigues dos Santos. 2010. « A mulher no Cante Alentejano ». In Proceedings of the International Conference in Oral Tradition, Vol. ii, 31-38. Ourense : Concelho de Ourense.
Castelo-Branco, Salwa. 1992. «Some aspects of the "Cante’ Tradition of Cuba : A Town in Southern Alentejo, Portugal » in Livro de Homenagem a Macário Santiago Kastner, 546-561. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian.
Castelo-Branco, Salwa. 1994. "Secular and Religious Songs from the South-Southern Alentejo: Cuba". Musical Traditions of Portugal. The World’s Musical Traditions 9, edited by Max Peter Baumann, 24-34. Wasshington:International Institute for Traditional Music (CD).
Castelo-Branco, Salwa. 1997. Voix du Portugal. Paris: Cité de la Musique/Actes Sud.
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Castelo-Branco, Salwa. 2014. "Sons da Memória: Os Registos Sonoros de Armando Leça no Alentejo/ Sounds of Memory: Armando Leça’s Sound Recordings from Alentejo" in, Maria do Rosário Pestana, Vozes e estéticas no Alentejo. Edição crítica de registos sonoros realizados por Armando Leça, em 1939. Vila-Verde: Tradisom.
Castelo-Branco, Salwa. 2017. "Para o estudo dos Patrimónios Sonoros do Alentejo," in Maria do Rosário Pestana and Luísa Tiago de Oliveira (eds.) Cantar no Alentejo: A Terra, o Passado e o Presente. Estremoz: Estremoz Editora.
Castelo Branco, Salwa e Jorge Freitas Branco. 2003. "Folclorização em Portugal: uma perspectiva", in Vozes do Povo A Folclorização em Portugal, org. Salwa Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco, 1-24. Lisboa: Celta.
Hall, Stuart. 1996. "Introduction: Who needs "Identity’?. Questions of Cultural Identity, edited by Stuart Hall and Paul du Gay, 1-17. London: Sage.
Mareco, Susana. 2017. "A Nova Geração do Cante e as Manifestações sobre o Cante Alentejano" in Maria do Rosário Pestana and Luísa Tiago de Oliveira (eds.) Cantar no Alentejo: A Terra, o Passado e o Presente, 89-118. Estremoz: Estremoz Editora.
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Simões, Dulce. 2017. "A turistificação do Cante Alentejano como estratégia de "desenvolvimento sustentável’: discursos políticos e práticas da cultura" in Cantar no Alentejo: A Terra, o Passado e o Presente, coordenação Maria do Rosário Pestana e Luísa Tiago de Oliveira (eds.), 59-88. Estremoz: Estremoz Editora.
[1]Os 81 registos sonoros coligidos no Alentejo foram editados pela primeira vez em 2014, juntamente com as notas de campo e fotografias coligidas por Armando Leça (Pestana 2015).