Gaiteiros nos círios da Carregueira e dos Olhos de Água

Os círios são confrarias ou associações de romeiros que no concelho de Palmela mantêm os “seus gaiteiros”, ou seja, o grupo de tocadores tradicionais com gaita de foles e caixa de rufo ao qual se podem juntar mais instrumentos, como por exemplo, o clarinete e o bombo. Segundo um dos gaiteiros locais, os círios são “uma tradição muito grande. Ali a nossa casa já tem 150 anos de existência [refere-se ao Círio dos Olhos de Água], enquanto o Círio da Carregueira já tem quatrocentos e cinquenta e tal anos. Aquilo vem de gerações para gerações, sempre com gaiteiros” (entr. António dos Santos Bernardes 2013).

Estes músicos são chamados para tocar, durante várias semanas, nos peditórios que realizam na península de Setúbal e nas atividades rituais das romarias a Nossa Senhora do Cabo Espichel (no dia 15 de agosto em Sesimbra) e a Nossa Senhora da Atalaia (no último fim de semana de agosto no Montijo). “A recolha de fundos principiava no terceiro domingo de Junho, no Changaio, no concelho de Setúbal, e acabava na sexta-feira da Festa Grande, na Carregueira, durava quase dois meses e meio. Constituíam o grupo de peditório: um tocador de gaita-de-foles, outro clarinete, outro de caixa, outro de bombo; um indivíduo com uma saquinha de pano; outro com um guião; um escrivão; e, nos lugares onde se gastavam mais foguetes, um homem, com um molho deles. Os diretores do Círio, em geral, participavam no peditório. À exceção do portador da bandeira, que era pago pelo arrematante da bandeira principal do ano anterior, todos os outros elementos eram assalariados pelo Círio. Os tocadores de gaita-de-foles e clarinete ganhavam mais do que os de caixa e bombo” (Dias 2000, 53). No excerto que acabámos de citar, Mário Balseiro Dias refere-se a um tempo passado do círio da Carregueira, que não especifica. António dos Santos Bernardes, um dos gaiteiros que acompanhou os círios durante mais de quarenta anos, descreveu assim o peditório: “No círio da Carregueira, antes das festas da Atalaia, fazia-se um círio de dois meses, chamava a gente um peditório, andava-se pelo concelho a pedir e a tocar. Hoje isso acabou. O círio da Carregueira é formado pelo caixa, bombo, clarinete e a gaita e é o bandeira, é o saquinho, é o homem que escreve o donativo ... Entra-se de porta a porta para um peditório, para angariar fundos para fazer a festa. E até já andámos pelo campo a pedir em cavalos e em burros. É assim a vida, estas coisas vão acabando! A gente é que vai acabando, o círio nunca acaba! A gente diz assim : -Eh pá o tempo passa! Mas não é o tempo passa, quem passa é a gente!” Estas coisas ficam cá todas, a gente é que vamos embora” (entr. António dos Santos Bernardes 2013).

A participação dos gaiteiros é central na demarcação de um espaço simbólico comum durante o percurso entre a sede do círio e o espaço da romaria, ou na pontuação dos atos coletivos da “arrematação das bandeiras”, da “lavagem da cara”, etc. Segundo Estanislau Marco, tocador de bombo e Vice-Presidente do Círio da Carregueira, “os gaiteiros fazem parte da tradição dos círios.... Uns levam gaiteiros, outros levam charangas, cada círio leva os seus, como pode... São contratados para tocar nos peditórios e na arrematação das bandeiras, também tocam na chegada do círio à Atalaia, na lavagem da cara.... Quando o círio chega à sede, eles têm de tocar enquanto se arrumam as bandeiras e se instala o andor de Nossa Senhora. As pessoas estão à espera, porque foi sempre assim... (entr. 2013).

Os gaiteiros dos círios são um bom exemplo do modo criativo e original como a música constrói o espaço público em Palmela. Reiteradamente, ano após ano, atualizam a memória social coletiva e definem com as suas sonoridades um espaço relacional aberto e móvel que acolhe, integra e abriga as pessoas na prática coletiva ritual.

A atividade musical destes grupos designados ‘gaiteiros’ é dinâmica: se nas últimas décadas era exclusiva de homens, no século XXI integra mulheres. Também no repertório dos músicos é patente esse dinamismo: a par dos temas tradicionais os músicos tocam temas sempre atuais da música popular portuguesa.

Para incorporarem essas músicas nos seus repertórios, os tocadores desenvolvem as suas pesquisas nas feiras, na rádio, na televisão e inclusive na Internet: “Quando vamos às feiras, os discos de grande sucesso são os primeiros que eles põem a tocar. A gente passa e qualquer barraco põe a tocar o êxito do momento, a música principal. A gente põe-se lá ao lado a ouvir. Com o computador também se tira muita música, eu também tenho computador e fixo muita música na pen” (entr. José Ratinho 2013). Joaquim Firmino, tocador de gaita de foles explicita assim os processos de aprendizagem do novo repertório: “há músicas que eu aprendo na telefonia, na televisão, .... eu não sei música mas tive gosto nisto e comprei um gravador. Eu gravava, ouvia e tirava na gaita.... Eu não sei música”. Se calhar, os que sabem música não conseguiam tocar” (entr. Joaquim Firmino 2013). António dos Santos Bernardes sustenta que esse processo de aprendizagem acontece porque tem “bom ouvido, boa memória. Ouço uma música através de um rádio. Ouço a música duas ou três vezes e fixo. Depois, começo a tocar, começo a treinar e dali sai. Fica de tal maneira cá gravada, está cá no cérebro e é uma coisa automática. Não penso em nada” (entr. António dos Santos Bernardes 2013).

Estas músicas sempre renovadas destinam-se a ser tocadas nos peditórios, cortejos e outros momentos de convívio. Porém, como refere o clarinetista Manuel Justo Carvalho, “a música da procissão é diferente, são músicas mais santas, mais lentas.... É uma música diferente” (entr. Manuel Justo Carvalho 2013).

Na memória dos tocadores atuais reverberam sonoridades e toques de gaiteiros como Toniber. Ana Pereira, uma tocadora de gaita de foles que tem sido convidada a tocar em diferentes domínios da música, dedica-se a aprender com os músicos locais os toques tradicionais que depois integra no seu repertório. É responsável pela salvaguarda desses toques e pela valorização da gaita de foles na península de Setúbal.

Devido à importância que os gaiteiros detêm nos dois círios de Palmela, os seus músicos são frequentemente convidados para participar em atividades organizadas por círios de outras localidades, como por exemplo o Círio dos Marítimos em Alcochete.

Em 2013, o círio da Carregueira era constituído por quatro músicos – Joaquim Felismino, na gaita de foles, Manuel Justo Carvalho, no clarinete, Estanislau Marco, no bombo e Raul Simões na caixa e o círio dos Olhos de Água dois elementos António dos Santos Bernardes, na gaita de foles e José Domingos dos Santos Ratinho, na caixa.

Entrevistas citadas

António dos Santos Bernardes, tocador de gaita de foles. Entrevista realizadas por Maria do Rosário Pestana em Março e Agosto de 2013.

Estanislau Marco, tocador de bombo e Vice-Presidente do Círio da Carregueira. Entrevista realizada por Maria do Rosário Pestana em Agosto de 2013.

Joaquim Firmino, tocador de gaita de foles. Entrevista realizada por Maria do Rosário Pestana em Agosto de 2013.

José Domingos dos Santos Ratinho, tocador de caixa e elemento da direção do Círio dos Olhos de Água. Entrevista realizadas por Maria do Rosário Pestana em Março e Agosto de 2013.

Manuel Justo Carvalho, clarinetista. Entrevista realizada por Maria do Rosário Pestana em Agosto de 2013.

Mário Balseiro Dias, entrevista realizadas por Maria do Rosário Pestana em Março e Agosto de 2013.

Referências

Dias, Mário Balseiro (2000) Círios de Caramelos. Pinhal Novo: edição da Junta de Freguesia de Pinhal Novo.

Marques, Luís (2005) Tradições Religiosas entre o Tejo e o Sado. Lisboa: Assírio & Alvim.

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