No dicionário biográfico Os muzicos portugueses, publicado por Joaquim de Vasconcellos em 1870, José dos Santos Dória é descrito como um exímio tocador de "viola, denominada vulgarmente de Arame" (Vasconcellos 1870, 83). Ao longo do texto, o autor refere-se a algumas técnicas de execução empregues por José Dória (idem, 87) e procede à enumeração e descrição das obras musicais interpretadas por este violista.
Transcrição integral da biografia de José dos Santos Dória:
"DORIA (José) — Ha tão pouco nos deixou este homem distincto, que ainda estarão de certo na memoria de todas as pessoas que o conheceram, as qualidades raras do amigo e do artista.
Triste sorte a que corta o fio da vida a essas inteligencias raras, que nos enchem estes duros e aridos caminhos da nossa vida com as flores mais preciosas de um talento privilegiado.
Cruel fatalidade que creou mais um epitaphio, destruindo mais uma vida; felizmente que o nome ainda vive, e viverá de certo em quanto em nós houver um ultimo sentimento generoso, bom e justo.
Nasceu em Coimbra a 9 de Novembro de 1824 e ahi falleceu a 25 de Maio de 1869.
Parece que ninguem adivinhou a intelligencia artistica de José Doria que de certo mui cedo se manifestou.
Umas poucas e mui limitadas noções que tinha da Arte, foram-lhe communicadas pelo musico José Maximo Dias, Mestre do Seminario Episcopal, no principio e meado d'este seculo.
Este auxilio durou pouco mais do que um anno e não chegou a dois; mesmo as lições não se sucediam regularmente, porque outros estudos impediam José Doria de se dedicar seriamente á sua Arte favorita.
Por isto se vê, que pouco ou nada poderia ter aproveitado, demais sendo o Mestre bastante vulgar.
Estas lições cessaram de todo quando o mancebo entrou para os estudos secundarios, e assim ficou elle entregue aos seus proprios recursos.
O que sabia do mechanismo do Piano de pouco lhe valeu, visto ter abandonado o estudo d'este instrumento no principio do caminho.
Sobre a Viola, denominada vulgarmente de Arame, e que elle começava a estudar, se concentrou a sua attenção.
O seu talento artistico tinha encontrado o instrumento necessario; já não havia que hesitar assim o comprehendeu José Doria e o futuro provou bem a verdade do seu pressentimento.
Em pouco tempo já era fallado o talento com que tocava este instrumento singular; o Fado de Coimbra, se celebre era, mais celebre ficou pela Viola de José Doria.
Já não havia rivaes presentes, nem possibilidade de os haver para o futuro.
Estavam assim as cousas e assim ficaram por muito tempo, até que um dia o nosso fadista se escapou até Lisboa, levando a celebre Viola a pedido de uns amigos da capital.
Lá se tocou diante de um auditorio escolhido o celebre e já tão fallado Fado de Coimbra. Mas, ou fosse a singularidade da canção popular, ou fosse a novidade do instrumento, o seu timbre extranho e som mysterioso, talvez todo este conjuncto de circumstancias deixou o auditorio admirado sim, mas não debaixo da impressão, que o habil violista tinha imaginado.
Algumas das damas que estavam presentes parece que enunciaram levemente o desejo de ouvirem no instrumento alguma aria italiana, alguma cousa mais culta que o Fado popular. José Doria justamente ferido no seu orgulho, determinou tirar uma boa e leal desforra. Voltou a Coimbra e pediu a um amigo seu, pianista e algum tanto compositor, o favor de lhe arranjar algumas pequenas phantasias sobre motivos de Operas italianas.
O amigo accedeu e fez umas tres ou quatro reducções agradaveis com acompanhamento de Violão. Se bem nos recordamos, eram sobre o Trovador, Macbeth, Sapho e não sei que mais.
Depois de estudadas estas peças e de ter augmentado o repertorio com algumas composições originaes, eil-o de novo, caminho de Lisboa.
A segunda visita foi um triumpho completo, a opinião do auditorio um pouco severa durante o primeiro ensaio, foi tomada de assalto. Os ouvintes ficaram admirados diante de semelhante metamorphose; e se a primeira visita foi uma pequena provação para o nosso artista, comtudo não a devemos lastimar, pois ella influiu decididamente sobre o talento de José Doria, dando-lhe uma direcção differente, e abrindo-lhe mais vastos horisontes artisticos.
O violista comprehendeu que os recursos do seu bello instrumento não se limitavam só ao simples, ainda que poetico Fado; exercitou as suas forças e conheceu que chegavam para muito mais.
O estudo sério do seu instrumento, que tinha principiado depois da primeira e memoravel visita a Lisboa, produziu successivamente os mais bellos resultados.
Assim foi que um dia, em 1869 veiu a Coimbra o celebre prestidigitador Hermann e ficou maravilhado diante do tocador e do instrumento. A sua admiração foi tal, que convidou o artista a acompanhal-o nas suas viagens ao estrangeiro, assegurando-lhe bons recursos e melhor recepção.
Assim estivesse o nosso artista tão convencido, como o estava o enthusiastico allemão, que decerto se teria aproveitado de semelhante offerta. Infelizmente não pôde ser; mil obstaculos o impediam, e entre muitos, o mais imperioso: a sua clinica na cidade. José Doria ficou.
Os annos passaram até Outubro de 1865, época em que o vimos.
Era então um bello homem, figura viril, um dos raros e verdadeiros typos da peninsula, que hoje tão difficilmente se encontram.
Ouvimos a sua Viola, as suas Canções peninsulares, o seu Fado emfim, tudo nos pareceu um sonho, uma cousa phantastica.
Nós, que tinhamos percorrido em peregrinação artistica a Allemanha, a França, a Inglaterra, viemos encontrar apenas chegados a Portugal uma surpreza nunca imaginada.
Quem nos diria, que depois de termos sentido o effeito d'essas orchestras magicas, animadas pelo sopro inspirador e ardente de Beethoven, Mozart, Haendel, Weber e Berlioz, — haviamos de encontrar n'este Portugal, n'um cantinho da Europa, um instrumento pequeno, modesto e debil — para nos causar tão extranhas e agradaveis sensações!
A Viola de José Doria ficou sendo desde então tambem nossa amiga, amisade que durou quatro annos e que de certo não morreu com o seu dono. Aqui damos a lista quasi completa das suas composições para viola:
1.) A Dôr!
2.) Resignação.
3.) Saudade.
4.) 2 Walsas burlescas.
5.) Capricho burlesco.
6.) Canção ingleza.
7.) Queixume.
8.) Um sonho.
9.) Canção Tyrolesa.
10.) I Remember, lembrança de Inglaterra.
12.) Mazourka.
13.) Desalento.
14.) Lamentos
15.) Caprichosa
16.) Serenata.
17.) Desdem.
18.) Incognita...
19.) Tango: Ai, que ferro!
21.) Fantasia sobre a Walsa do Pardom de Ploermel.
22.) Variações sobre o Carnaval de Veneza.
23.) Marcha solemne.
24.) Preghiera.
25.) Capricho de Concerto (Introducção—Andante_Scherzo Final.)
Resta-nos dizer alguma cousa a respeito d'estas composições. Não fallaremos de todas, porque já nos falha a memoria, já porque entre ellas ha inferiores e superiores; escolhemos pois as que tiveram maior fama e que nós tambem entendemos serem as mais apreciaveis.
Em primeiro logar a Dôr? Quem não se sentiu impressionado por aquella melodia triste e melancholica, queixa suspirada, que se escapa de vez em quando da voz do pobre homem do povo que ás vezes falla essa triste linguagem, linguagem que tão pouca gente entende!
Que diremos da Saudade, do Queixume, do Desalento, da Serenata (!) do Desdem (!) canções verdadeiramente peninsulares, indiscretamente roubadas ao povo e suspiradas na Viola como jámais Trovador cantou!
Não temos menos a louvar as suas composições burlescas: 2 Tangos, 2 Valsas, e um Capricho; a elegancia, o bom gosto e uma variedade de effeitos nunca ouvidos caracterisam estas ideias musicaes.
A Canção ingleza é pretenciosa como o seu titulo, e tem pelo seu estylo, affinidade burlesca, com as que acima mencionamos.
A Canção do Tyrol lembra os valles da Suissa e os seus graniticos gigantes, o Ranz der Kuhe e o alegre Iodeln do jovem pastor.
A Marcha tinha entre outras cousas apreciaveis, uma parte muito notavel, toda em harmonicos, que José Doria tocava artisticamente.
Mais difficeis e complicadas eram a Fantasia sobre a Walsa do pardon de Ploemel, e as Variações sobre o Carnaval de Veneza.
O Capricho de Concerto é certamente a mais notavel d'entre todas as suas composições. N'ella se encontram reunidas todas as difficudades possiveis e imaginaveis na Viola, todos os effeitos de harmonicos, cordas duplas, triplas, trinados (!) dedilhação, de sourdine, etc.
Em toda a peça se revela uma originalidade e uma tal abundancia de effeitos novos, que espanta.
A Introdução abre com umas harmonias extranhas e uns efeitos curiosos de cordas duplas.
O Andante é pouco caracteristico; ainda assim tocado por elle, sempre se ouvia com agrado; em compensação é seguido de um Allegro, ou antes de um verdadeiro Scherzo, que é admiravel de brio, de originalidade e de distinção. Modelo perfeito do Scherzo beethovenesco, e que escapou, como por milagre, dos dedos do violista e veiu misturar-se com ideias suaves e tristes da Peninsula.
O Final do Capricho de Concerto, é formado por uma bella Marcha, bem rhytmada e com uma boa accentuação marcial.
Umas phrases imitando um toque de Tromıbetas, terminam brilhantemente esta notavel peça.
Ainda devemos fechar com algumas palavras sobre o FADO e a maneira como José Doria o executava.
Nada ouvimos até hoje mais original, nem mais surprehendente! Não haverá decerto leitor algum que não tenha ouvido ao menos uma vez o celebre Fado de Coimbra, e então tel-o ouvido por José Doria, poucos foram os felizes que se podem gabar d'isso.
A canção popular apparecia primeiro simples, sem enfeite nem adorno; depois vinha a primeira variante, a segunda, a terceira, quarta, quinta, sexta, decima, vigesima, no fim já sem numero, em jorro continuo e inexgotavel!
Prodigio de imaginação, que deixava na alma do espectador uma impressão profunda, difficil de analysar pelas variadas cordas que ella ia ferir no coração do ouvinte.
Era ouvir e admirar, a variedade e accentuação dramatica do rhytmo, a riqueza e abundancia das variantes, dos accentos, o maravilhoso da execução!
A canção popular, tristemente monotona, transformava-se em queixa plangente, passava de repente á agitação febril, acalmava, permanecia serena por algum tempo, continuava assim em languido abandono, recrudescia novamente, abrandava, e subia ainda do pianissimo mais suave, d'um suspirar imperceptivel até á furia desenfreada, desencadeando-se por corridas e arpejos phantasticos que iam terminar n'um ultimo suspiro!
Lembrava-nos isto um d'esses bellos contos de Hoffmann, com que a gente sonha muito tempo depois de os ter lido.
O Fado prodigioso ouvia-se assim durante uma hora e duas até, sem cançar nem o auditorio nem o tocador. Quel lêr estas linhas ha de julgar que nós fizemos d'esta biographia um conto impossivel. Pois não é assim; appello para pessoas insuspeitas, para a opinião unanime das pessoas que o ouviram em Coimbra e em Lisboa; appello para o testemunho importante de Noronha; de Cossoul e de Madame Rey-Balla que ouviram o nosso artista, poucos mezes antes da sua morte em Lisboa, em uma reunião do Marquez de Castello-Melhor.
Tanto Noronha, como a celebre cantora ficaram egualmente admirados do tocador e do instrumento; esta ultima distinguiu o violista, brindando-o com o seu retrato em que se lia uma referencia mui honrosa para o nosso artista.
E note-se que José Doria já não era, (como elle mesmo dizia) senão a sombra do que fôra em outros tempos, tantos eram já os progressos da doença que o havia de roubar poucos mezes depois aos affectos dos seus parentes e amigos. As canções simples, despretenciosas, os Tangos, os Fados, as Serenatas, ouviam-se com mais agrado do que essas peças de largo fôlego, essas phantasias difficeis que ele tocava sobre motivos de Operas.
A Viola não é instrumento para assombrar pela difficuldade de mechanismo, mas só para dizer bem uma pequena canção popular que se ensinua então facilmente no ouvido.
Essas Phantasias sobre a Saıpho, Macıbeth, Trovaıdor, essas variações sobre o Carnaval de Veneza, até mesmo o proprio e aliás bello Capricho de Concerto, eram trechos, que estavam deslocados para aquele debil e pequeno instrumento, cuja sonoridade não chegava para tão grandes esforços.
Se elles agradavam, devia-se isso á virtuosidade unica do violista, que imaginou e creou um mechanismo especial para os executar; tradição que fica facilmente perdida, pois um talento como José Doria, raras vezes tem successor.
Deixou também muitas composições para Piano e para Canto; abstrahimos d'ellas por serem menos notaveis e mesmo porque a importancia do artista estava toda concentrada na Viola e nas peças para este instrumento.
Todas estas composições ficaram em manuscripto, salvo uma ou outra rara que foi lithographada.
Das composições para Viola, nem uma só foi publicada; o auctor não sabia notar a sua musica; tocava de cór e sempre desassombradamente umas trinta e tantas peças para a Viola, tour de force que fazia, graças a uma memoria privilegiada.
As poucas composições que ha notadas, foram-n'o por amigos do auctor, que assim tentaram salvar reliquias artisticas.
Apesar d'esta falta de instrucção, era o instincto musical n'elle tão forte, que um dia, falando-nos em escrever uma Operetta e objectando-lhes nós com a difficuldade de levar ávante semelhante ideia, com os conhecimentos musicaes que tinha, — respondeu-nos eloquentemente apresentando-nos dois ou tres dias depois uma pequena Ouverture, com os motivos necessarios, bem conduzidos e bem desenvolvidos.
Fez isto, sem uma ideia sequer de harmonia, guiado apenas por um instincto admiravel e por algumas poucas indicações que lhe haviamos dado sobre a apresentação e condução das ideias melodias.
Perfeitamente surprehendidos por semelhante resultado, não tivemos remedio senão acceder ao pedido de escrever um libretto para a futura Operetta; José Doria fez apenas mais um Duetti, creou umas bonitas arietas e depois morreu, cahindo tudo em esquecimento, pois nada tinha escripto do que fizera.
Examinem-se agora imparcialmente todos estes factos que apresentamos até aqui, em toda a luz de verdade; consider-se o triste isolamento artistico em que Josè Doria viveu a melhor parte da sua vida; o nenhum auxilio que recebeu de pessoa extranha, a influencia perniciosa de um meio artistico detestavel e desprezivel, —e chegar-se-ha depois certamente á conclusão: de que com aquelle homem se procedeu injustamente, sem amôr e sem respeito, porque ninguem lhe estendeu generosamente a mão, para o ajudar a ser o artista para que Deus o tinha creado. Tudo ficou em germen n'aquella natureza artistica, tudo se perdeu.
E scena triste, aquella que algumas vezes presenceámos, quando José Doria se accusava amargamente de ter fugido á vocação, quando via uma carreita out'ora bella e esperançosa perdida para sempre!
Cortava o coração, vêr como elle se dirigia as mais amargas recriminações, — elle, que menos culpa poderia ter em tal infelicidade.
Debalde tentamos convencel-o, respondia-nos então tristemente: Ganhei a vida a perdel-a!
Oh cruel, mas verdadeira duplicidade! Portugal teve um Medico de mais, mas um grande artista de menos!
Porém no que a Providencia fez, não ha a tocar; acceitemos as cousas só da mão de quem as póde conceder.
José Doria foi artista, já o vimos; a sentença a respeito do homem moral, ouve-se na bocca eloquente do povo de Coimbra, que o proclama o seu maior benfeitor; converse-se com o homem da sociedade, e então ouvir-se-hão historias, que serão sempre o elogio mais grandioso do seu caracter" (Vasconcellos 1870, 82-91).
Referência: Vasconcellos, Joaquim de. 1870. Os Musicos Portuguezes (vol.1). Porto: Imprensa Portugueza.