Cantar a duas, três ou mais vozes um repertório predominantemente modal, legado da sociedade agrária tradicional, é o modo de mulheres lutarem pela sustentabilidade da memória social no século XXI. Cantam em terceiras, quintas e, por vezes, em oitavas paralelas, num tempo que se distende à medida que entra cada uma das vozes, prolongando-se na suspensão final. Argumentam que o enlaçamento de vozes e vocálicos individuais é gerador de grande felicidade. No século XXI, estas mulheres detêm o conhecimento de um repertório, competências musicais e vocalidades que querem ver salvaguardados e reconhecidos. Querem partilhar e transmitir às gerações seguintes a experiência intersubjetiva e liminar do canto a vozes que reverbera nos seus corpos. Solicitaram a nossa colaboração para a inscrição desse conhecimento sensível no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, com a expectativa de uma posterior inscrição na Lista da UNESCO. Criámos uma equipa, partimos para o terreno, e falámos com dezenas de cantadeiras, encorajando-as a ativar o “canto de mulheres”, como algumas gostam de lhe chamar. Quisemos saber como cantam e por que razão o fazem. Partilhamos aqui alguns momentos desse encontro.
As Cantadeiras
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Se a memória dos trechos musicais e poéticos é partilhada com os homens, a competência musical de sobreposição das vozes em quintas paralelas é exclusiva das mulheres. As mulheres dão corpo e voz ao canto polifónico, numa ressonância coletiva que não dilui os vocálicos individuais. Ao longo de repetidas performances, estas cantadeiras incorporam competências que as habilitam a agir, seja cantando, expressando-se, assumindo uma apreciação crítica dos cantares e, em certas circunstâncias, criando novos versos e ornamentos melódicos. Por isso, na nossa investigação procurámos trazer para o entendimento das palavras não só o espaço relacional do cantar, como também o quem de quem canta. Verbalizaram a experiência do cantar a vozes com um “Ah!”, seguido de apreciações como: “Era uma alegria!”, “Era um divertimento!, Ah! Era um cantarolo danado!”.
Alguns Registos
Nostalgia
A âncora deste repertório de conhecimentos são as cantadeiras iniciadas na família, nos trabalhos agrícolas, na pastorícia, na plantação da floresta e, mais recentemente durante os ensaios. Com uma matriz rural, este repertório de conhecimentos e competências incorporadas é salvaguardado predominantemente por mulheres no centro e norte de Portugal. As vozes das detentoras da tradição materializam esse saber coletivo. Estão vivas na memória das cantadeiras mais idosas as performances do canto a vozes que reverberavam no espaço acústico das montanhas, campos e ruas, dialogando e desafiando outros grupos. A pregnância social dessas performances está também patente nas diferentes designações que o canto a vozes adquiriu, desde “canto”, “cantedo”, “cantarola”, “cantada”, ”cramol”, “terno” a “cantaréu” ou “cantaraço”. De igual modo, cada uma das vozes que tecia a textura coral mereceu distintas nomenclaturas, conforme a localidade onde era cultivada.
Descante, erguer e outras designações
Memórias do Canto a Vozes
Constituição dos Grupos
No século XXI, o canto a vozes tem maior expressão no centro-norte de Portugal, em grupos formalmente instituídos. Distribuem as vozes cantantes de modo não equitativo, sendo frequente haver em cada grupo apenas duas ou três mulheres que sabem sobrepor as vozes mais agudas. São grupos femininos e mistos, por vezes gerados dentro de grupos e ranchos folclóricos, com uma agenda de ensaios e de apresentações públicas. Diferenciam-se pelo repertório, número de vozes cantantes e indumentária: a maior parte circunscreve as suas representações à localidade ou região onde o grupo está sediado, sendo assim excecionais os grupos Cantadeiras do Minho, Cramol, Segue-me à Capela ou Sopa de Pedra, por cantarem um repertório mais alargado.
Ativismo
No século XXI, ativistas fazem do cantar a vozes uma prática de memória, identidade e, em certos casos, de luta pela sustentabilidade do ecossistema social local, das suas aldeias. São conhecedoras das grandes transformações que romperam com a ordem tradicional da sociedade agrária na qual algumas cresceram, dos novos valores sociais que silenciaram o espaço público e da compulsiva mobilidade dos seus conterrâneos, sujeitos a êxodos migratórios e, mais recentemente, à mobilidade pendular dos aposentados que residem uns meses no país de origem e outros no país de acolhimento.
Na maior parte dos casos, são as mulheres ativistas na salvaguarda dos conhecimentos necessários para cantar a três vozes que se organizam em grupo formalmente ou informalmente constituído para intervir nas suas localidades. em quatro frentes: impelem as mulheres mais velhas a partilhar o saber que detêm
Cantam reiteradamente com e para a sociedade local proporcionando a vivência de experiências coletivas em torno do cantar a três vozes.
Rememoram no espaço público o seletivo conjunto de históricas, discursos e repertórios que faz a memória social local, seja em curtas alocuções que antecedem a performance coral ou na exibição de objetos e modos de vestir que atestam a experiência coletiva das gerações passadas
Procuram interessar crianças e jovens na aprendizagem desse repertório. Esta ação visa fortalecer e renovar os suportes e meios convencionais de transmissão de conhecimento e memória comum. Enfrentam assim a rutura com as formas tradicionais da sociedade agrária, onde esses conhecimentos tinham uma função social quotidiana e enfrentam a quebra na continuidade das relações (deslocalização, migração, esvaziamento do espaço público, baixa natalidade) que afetivamente teciam a lembrança e o esquecimento na memória das sociedades. Paralelamente, lutam externamente pelo reconhecimento da diferença cultural que detêm.
Transmissão de Conhecimento
Estas mulheres geram espaços relacionais na rememoração de cantos, cantadas, cramóis, cantas. Sabem que a sustentabilidade do canto a vozes depende da sua reiteração em diferentes contextos e da transmissão às gerações seguintes. No século XXI, as competências do canto a vozes são transmitidas no contexto do ensaio, pela observação e reprodução de detentoras da tradição, pela audição de registos sonoros, ou pela mediação de um maestro que expõe oralmente as transcrições musicais dos etnógrafos. Neste processo as novas cantadeiras alargam o seu conhecimento de modas e cânticos e conquistam o direito à individuação da sua voz. Os ensaios são os principais contextos de transmissão do conhecimento necessário à realização das práticas musicais. Encontramos famílias onde as três gerações sabem cantar
Criatividade
No século XXI, os grupos de mulheres que ativamente zelam pela sustentabilidade do canto a vozes dividem-se entre os que defendem a reprodução de documentação histórica e os que promovem a salvaguarda em diálogo com o presente, ou o passado recente, incorporando a criatividade individual. Nestes casos, o contributo autoral de cada um, ou de cada uma, não é explicitado para o exterior. Pequenos grupos informais, de familiares ou de vizinhança, integram nas modas tradicionais versos recentemente criados por mulheres detentoras desse conhecimento. Todavia, esses versos não fazem parte do repertório dos grupos que representam essas localidades.
Arquivo: Etnografia e colecionismo
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Folcloristas e etnógrafos documentaram a diversidade das peças musicais do canto a vozes, desde finais do século XIX. Os corais de matriz rural a duas vozes que se movem á distância de terceiras paralelas estão documentados desde finais do século XIX, em diferentes localidades, do Minho ao Alentejo. Em 1890, defendia-se na revista Amphion a coleta dos cantos populares com a identificação do tipo de “harmonia” praticada. O termo “harmonia” referia-se à sobreposição de vozes, sendo novamente utilizado na Circular que o Conselho Musical do Real Conservatório de Lisboa elaborou em 1902 com a finalidade de compilar num cancioneiro cantigas populares de diferentes partes do país. Mas foi o botânico Gonçalo Sampaio quem mais cedo analisou de modo sistemático o canto feminino a três e mais vozes, centrando o seu estudo na região do Minho. Logo em 1926, numa conferência proferida na cidade do Porto, apresentou um grupo a cantar, em terceiras e quintas paralelas, uma moda do linho coligida por si em Póvoa de Lanhoso. Autor da primeira classificação dos cantos populares do Minho, viu nas “modas de terno” ou de “lote” a quatro ou cinco vozes femininas semelhanças com o cantochão, afirmando que a melodia principal se encontra na voz mais grave, sobrepondo-se as outras por cima: “As vozes graves que fazem ouvir a melodia chamam-se baixos e são elas que iniciam o canto; mas um destes que toma o nome de baixão, desdobra, às vezes, em função de contrabaixo, para a nota inferior de certos acordes, como no acorde perfeito da dominante, as semi-cadências. Depois da primeira ou primeiras frases dos baixos, entra o meio, a que nalgumas localidades chamam desquadro, acompanhando superiormente a melodia em 3ªs e algumas vezes em 4ªs. Nas semi-cadências é que geralmente começa o guincho, denominado também desencontro, ou requinta, ou 2º meio, conforme as terras, harmonizando por via de regra em 5ªs ou 6ªs dos baixos. É na última frase ou na última nota do canto que se levanta o sobreguincho ou fim, executando a réplica aos baixos.” (Sampaio 1929). Deve-se a Armando Leça e aos técnicos da Emissora Nacional de Radiodifusão que o acompanharam entre 1939 e 1940 a primeira coleção de registos sonoros do canto feminino a três e mais vozes nas regiões centro e norte do país. Depois dessa data foram vários os etnógrafos e coletores que documentaram esta prática coral.
1938
1939
1940
1956
Ambientes da Memória Social
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As profundas transformações que ocorreram nas aldeias nas últimas décadas, retiraram significado social aos rituais cíclicos ligados à sociedade agrária. No século XXI, são sobretudo mulheres as ativistas pela transmissão do conhecimento e pela manutenção dos ambientes de memória social, ou seja, os textos e contextos de experiência coletiva, comunitária, do canto a vozes. Sabem que a memória social habita os corpos e requer a prática social reiterada, aberta à dialética do lembrar e esquecer e por isso fazem do cantar a vozes uma prática de memória, identidade e, em certos casos, de luta pela sustentabilidade do ecossistema social local, das suas aldeias. São conhecedoras das grandes transformações que romperam com a ordem tradicional da sociedade agrária na qual algumas cresceram, dos novos valores sociais que silenciaram o espaço público e da compulsiva mobilidade dos seus conterrâneos sujeitos a êxodos migratórios e, mais recentemente, à mobilidade pendular dos aposentados que residem uns meses no país de origem e outros no país de acolhimento.
A 'Encomendação das Almas'
A 'encomendação', 'amentação' ou 'ementação' das almas é um ritual do culto dos mortos realizado à noite, no período da Quaresma. Nessas noites, ‘ementadores’, ‘amentadores’, ‘rogadores’ ou ‘regrantes’, percorrem caminhos para cantar um repertório próprio e rezar às almas. Fazem-se ouvir ao longe, esperando que em suas casas, aqueles que os ouvem, participem rezando. São grupos de mulheres, homens ou ambos, que por devoção ou ativismo pela cultura local, entoam cânticos como o Alerta, a Oração às Almas, a Paixão, ou os Martírios do Senhor, e rezam em voz alta orações da liturgia católica (como o Pai Nosso, a Avé Maria, ou a Salve Rainha). Depois de extinto na maior parte das localidades onde se praticava, este ritual ganhou uma nova expressão no século XXI fazendo parte das agendas dos ativistas pela cultura local e dos programas de turismo cultural de autarquias municipais. O som de alguns dos cânticos que constituem esta prática está documentado desde 1939, na Recolha Folclórica realizada por Armando Leça com o apoio técnico da Emissora Nacional de Radiodifusão. Dez anos depois, Vergílio Pereira descreveu esse ritual no Cancioneiro de Resende (Pereira 1950). Data também desse ano o início do estudo que Margot Dias e Jorge Dias realizaram (Dias e Dias 1953). O interesse por este ritual foi ainda partilhado no mesmo período por mais três membros da Comissão de Etnografia e História do Douro Litoral, Augusto César Pires de Lima e Alexandre Lima Carneiro (Lima e Carneiro 1951) e Manuel Rodrigues Simões Júnior (1953).
Missa
Mediações [Politicas Culturais, Media e Industrias]
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Até final dos anos 1970, os periódicos apenas noticiaram o canto a vozes a propósito da atividade de folcloristas e etnógrafos como Gonçalo Sampaio, Armando Leça, Artur Santos ou Michel Giacometti ou da edição comercial da coleção Alvorada, da Rádio triunfo. Com exceção dos oito programas difundidos pela Emissora Nacional de Radiodifusão, em 1940, onde Armando Leça deu a conhecer uma pequena parte da coleção de registos sonoros coligidos no âmbito da Recolha Folclórica, entre 1939 e 1940, as notícias a propósito de grupos e de cantadeiras como Isabel Silvestre, são posteriores à reinstauração da democracia em Portugal. Esses são também os anos de intensificação da gravação comercial, destacando-se o papel da Valentim de Carvalho, na década de 1980, com a edição dos discos do Grupo Etnográfico de Cantares e Trajes de Manhouce. A disseminação de larga escala do canto a vozes, decorrente da mediação das indústrias fonográfica e do espetáculo é, no século XXI, um requisito para a sustentabilidade do canto a vozes. Conscientes disso, os grupos de canto a vozes diligenciam para aceder à rádio e à televisão e despendem muitos dos seus recursos (e abdicam dos direitos de vendas) na gravação de um CD.